Em uma época dominada pela potencialidade dos megapixels, da imagética Go-pro® e das panorâmicas estonteantes dos drones, podemos nos perguntar: qual o papel desempenhado pelas obras hiper-realistas na conjuntura atual? Qual o sentido deste tipo de produção artística face ao desenvolvimento contínuo das tecnologias de captação da imagem?
Ao observarmos estas questões de forma simplista, a busca pela verossimilhança (outrora tratada como condição sine qua non para a produção de uma obra artisticamente reconhecida[1]), por si só, não faria sentido no mundo atual dominado pelo imperativo da tecnologia e da alta resolução.
Contudo, parece ser justamente nesta contradição que se afirma o cenário no qual o hiper-realismo encontra sua maior relevância cultural.
As obras hiper-realistas (incluindo todas as gerações de artistas[2] pertencentes a este movimento) se destacam pelo esplendor e impacto do conteúdo visual que carregam. Estas obras contemplam representações em grande escala, com um nível de detalhamento primoroso sobre o nosso cotidiano e possuem como objeto, especialmente, a urbe e todo maquinário que domina a contemporaneidade.
De uma forma geral, podemos observar que dois aspectos centrais se destacam neste movimento artístico: a árdua busca pela verossimilhança e a representação de cenários do cotidiano (especialmente urbano).
O nível de precisão e de detalhamento das obras hiper-realistas (i.e. caraterísticas da busca pela representação verossimilhante), muitas vezes transplantando imagens fotográficas para a tela[3], transcende as questões puramente técnicas, e dialogam de forma direta com a nossa percepção sobre o tempo.
Observamos, a partir de uma mesma fonte de inspiração para a criação artística, uma espécie de combate entre o tempo instantâneo e veloz do clique fotográfico versus o tempo maturado e moroso da pintura detalhista. A transformação forçada entre distintas plataformas de criação, por meio de um processo lento e minucioso, resulta em um tipo de criação artística completamente inovador.
A criação de uma obra de arte que poderia se revelar num par de segundos, pelo instante de um clique, é forçosamente interrompida pelo artista; ela será gradualmente maturada, lapidada e reconfigurada. Neste momento já não falamos em produzir arte com filmes, tintas e pincéis, mas sim, com o próprio tempo. O tempo, portanto, transfigura-se na verdadeira matéria-prima utilizada pelo artista.
Para além da esfera cronológica, o locus também ocupa um papel central no hiper-realismo. Nas aparentes trivialidades e frivolidades representadas por cenas de um cotidiano urbano e maquinal, escondem-se aspectos de uma obviedade rica e explicativa. São nas imagens das cabines telefônicas vandalizadas, dos restaurantes de comida rápida, dos postos de gasolina ou dos cruzamentos desertos que se revelam dramas modernos; uma espécie de angústia latente dos tempos atuais.
Se à primeira vista as obras podem parecer compostas de uma artificialidade carente de emoção, em uma abordagem mais profunda podemos vislumbrar que, são nesses momentos frugais, que encontramos os aspectos mais primais, dramáticos e significativos da nossa sensibilidade.
A riqueza de imagens transpostas para as telas, em sua maioria oferecidas pela urbe contemporânea e pelos artefatos que cercam a modernidade, representam a proficuidade de elementos criativos a serem apropriados pelos artistas. Neste sentido “a realidade da imagem constitui a imagem da realidade” [4].
Deste modo, superadas as análises mais superficiais e gerais sobre o hiper-realismo, podemos considerar que, apesar de aparentar uma criação artística baseada no materialismo (especialmente aquele radicado no estilo de vida norte-americano), as obras deste movimento nos levam a uma fascinação artística universal, muitas vezes baseada nos dramas humanos acerca do nosso próprio tempo e espaço.
Notas:
[1] Vide os inúmeros exemplos encontrados na escultura grega clássica e nas pinturas renascentistas.
[2] Primeira geração (1960-1970) representada por artistas como John Baeder, Richard Ester e Charles Bell; segunda geração (1980-1990) representada por artistas como Davis Cone, Don Jacot e Rod Penner; e terceira geração (a partir de 1990) representada por artistas como Clive Head, Peter Maier e Roberto Bernardi.
[3] Geralmente nas técnicas de óleo ou acrílico sobre tela.
[4] AA, V. (2013). Hiperrealismo 1967-2012. Fund. Colección Thyssen-Bornemisza, 4-5, p.19.