Excertos sobre a história de São Paulo na primeira metade do século XX à luz das lentes de Becherini e Haberkorn

A história recente da cidade de São Paulo, especialmente aquela referente ao século XX, é conhecida por seu grande movimento de transformação econômica, urbana e social, oriundo, principalmente, da riqueza advinda da cafeicultura do século XIX e pelo processo de industrialização que se opera na primeira metade do século XX. Este processo apresentou especificidades importantes que merecem uma leitura pormenorizada.

A Herança da Cafeicultura

As transformações ocorridas no início do século XX, decorrentes da pujança econômica que a cidade demonstrava, sintetizada a partir de 1890, e oriunda dos excedentes financeiros provenientes da cafeicultura, marcou a ascensão de uma elite majoritariamente imigrante destituída de tradições, que apresentava um caráter comercial e, posteriormente, industrial.

Esta destituição de tradições locais deve ser considerada com especial cuidado, pois será responsável por caracterizar o modelo de transformação ocorrido: das moradias nas fazendas provincianas cafeicultoras à ostentação de estilos diferenciados e misturados, quase todos de origem européia (Art Noveau, Neoclássico e o ecletismo), que se afirmaram na arquitetura da cidade, e que serão apropriados pela mesma elite e pelo governo provincial de São Paulo, na gestão de Antonio Prado, como modelo e símbolo de desenvolvimento (a “europeização” do seu centro), sendo este o período preferencial registrado por Aurélio Becherini.

O projeto de uma civilização moderna, branca e de perfil europeu, mesmo que procurasse obliterar os vestígios de uma barbárie, representada pela população pobre e uma cidade provinciana, era lugar comum no imaginário das elites dominantes no início do século XX (SANTOS, 1998).

A sequência de fotos de Aurélio Becherini, apresentadas à seguir, explicitam tais considerações.

Av. São João, 1914

Av. São João, 1917

Av. São João, 1917

Viaduto do Chá, 1917-1918

Viaduto do Chá, 1917-1918

Vale do Anhagabaú, 1919-1920

Vale do Anhagabaú, 1919-1920

Largo de São Bento, 1920

Largo de São Bento, 1920

Rua Direita, 1916-1918

Rua Direita, 1916-1918

Largo da Misericórdia, 1910

Largo da Misericórdia, 1910

São Paulo como Metrópole – processo de transformação

Outro ciclo de transformação pode ser visualizado ao final da primeira metade do século XX. Apesar da força motriz das transformações apresentar a mesma natureza daquela visualizada no início do século, ou seja, de ordem econômica, os fatores determinantes agora são outros. A pujança, neste período, encontrava-se, especialmente, no processo de substituição de importações intensificado na década de 1940 com o início da Segunda Guerra Mundial e pela implantação da indústria automobilística.

Este dinamismo econômico se materializa na expansão física da cidade e no desenvolvimento da construção civil. Vale lembrar que é no segundo quartil do século XX que se inaugurou o emblemático Edifício Martinelli (1929) e os demais arranha-céus que lhe sucederam, como o edifício do Banco do Estado de São Paulo (SAES, 2004).

Nesta nova conjuntura, surgiu a figura de um político preocupado e com predileção pelo planejamento urbano: Francisco Prestes Maia. Prefeito nomeado pelo governo federal, no período de 1938 a 1945, deu fim à grande rotatividade de mandatários que se sucederam, num curto espaço de tempo, à frente da prefeitura de São Paulo.

A cidade novamente mudaria de feição, como uma espécie de caleidoscópio. A mentalidade paulistana pautava-se no progresso, entendido especificamente pela transformação qualitativa da produção industrial, do crescimento populacional, do tráfego, pela abertura de avenidas e pela construção de edificações (QUEIROZ, 2004), registros prediletos de Werner Haberkorn.

O legado de Prestes Maia prevaleceria por muitas décadas na doutrina urbanística da cidade de São Paulo. Seu Plano de Avenidas, editado em 1930, e que prevaleceu por mais de 40 anos, ainda define a estrutura organizacional viária da metrópole paulista (SEGAWA, 2004).

Vale lembrar que as mudanças que se operavam na conjuntura econômica e urbana da cidade apresentavam reverberações mais amplas, superando a questão do ordenamento e do embelezamento arquitetônico. As dimensões sociais, culturais e até, psicológicas, também se transformaram, mudando também a forma de viver, sentir, pensar e agir. Este conjunto de transformações acabou por tensionar o cenário. A cidade registrada nos cartões postais e álbuns oficiais era muito diferente daquela registrada nos jornais operários. Apesar destas tensões, observa-se na década de 1940 o anseio pelo modelo conhecido como “american way of life”, uma vez mais rompendo com o padrão vigente (RAGO, 2004).

A sequência de fotos de Werner Haberkorn, apresentadas à seguir, corroboram estas proposições.

Av. São João, 1940

Av. São João, 1940

Av. São João, 1952

Av. São João, 1952

Panorâmica do Centro de São Paulo, 1950

Panorâmica do Centro de São Paulo, 1950

Vale do Anhagabaú, 1945

Vale do Anhagabaú, 1945

Viaduto do Chá, 1939

Viaduto do Chá, 1939

Viaduto Santa Ifigênia, 19??

Viaduto Santa Ifigênia, 19??

A seleção de fotografias apresentadas ilustra o processo de transformação que, definitivamente, se inseriu como elemento constituinte da alma paulistana.

“Em São Paulo não há nada acabado e nem definitivo, as casas vivem menos que os homens e se afastam rápido, para alargar as ruas.”

(Alcântara Machado, apud, QUEIROZ, 2004, p. 51)

Apoio Bibliográfico:

QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Política e poder público na cidade de São Paulo: 1889-1954. In: História da Cidade de São Paulo, volume 3, a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

RAGO, Margareth. A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo, 1900-1950. In: História da Cidade de São Paulo, volume 3, a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

SAES, Flávio. São Paulo republicana: vida econômica. In: História da Cidade de São Paulo, volume 3, a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

SANTOS, Carlos José Ferreira dos Santos. Nem Tudo Era Italiano: São Paulo e Pobreza: 1890-1915. São Paulo: Annablume, 1998.

SEGAWA, Hugo. São Paulo, veios e fluxos: 1872-1954. In: História da Cidade de São Paulo, volume 3, a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

Diálogos entre História e Crítica: Permanências Contemporâneas

Aproximações Teóricas

Analisar as relações entre história e crítica de arte, na complexidade e dimensões de abordagens que suscitam, compreenderia um esforço que transcende o objetivo deste post. Considerando isto, propomos algumas breves aproximações teóricas e um diálogo sobre a constituição da arte e da cultura modernas e a sua relação com a condição da crítica, fazendo uso, em especial, de obras mais recentes do falecido historiador Eric. J. Hobsbawn, e de textos que versam sobre o pensamento crítico moderno, especialmente representado por obras dos filósofos Vladimir Safatle e Lorenzo Mammì.

O século XX, e o ainda inicial, contudo efervescente, século XXI, trazem consigo a potência de transformação em todas as dimensões da experiência humana. As análises comparativas entre as mudanças históricas deste período e a transformação observada no estatuto da crítica contemporânea, exemplificam e reforçam esta proposição.

As transformações históricas

Fatores constituintes da grande magnitude das mudanças ocorridas, desde o início do século XX até os dias atuais, residem, especialmente, nos diálogos sobre o desenvolvimento do capitalismo e da civilização burguesa, e podem ser sumariamente representados pela revolução da ciência e tecnologia, da efetivação da sociedade de consumo de massa e a entrada desta mesma massa na cena política (seja como eleitores ou consumidores).

Se considerarmos que na maior parte da história as sociedades humanas funcionaram com populações relativa ou absolutamente ignorantes, é notoriamente no século XXI que o grosso desta humanidade se torna capital para demandas da produção e da tecnologia. Neste contexto, o declínio dos grandes intelectuais engajados deve-se, especialmente, à despolitização dos cidadãos ocidentais num período de crescimento econômico e ao triunfo da sociedade de consumo. A crença na ação política como ferramenta de aperfeiçoamento do mundo já não ocupa papel de protagonista (HOBSBAWN, 2012).

Plantoir, 2001 Claes Oldenburg,

Plantoir, 2001
Claes Oldenburg

Nesta conjuntura, urge a necessidade de analisar em que circunstâncias a relação do homem com o ciclo produtivo subordina o homem ao sistema e, principalmente, de analisar e propor uma forma de elaborar uma nova imagem do homem em relação ao sistema que o condiciona (UMBERTO ECO, apud HOBSBAWN, 2012).

Podemos evidenciar que o muro que separa cultura e vida, trabalho e lazer e corpo e espírito, está sendo derrubado, e que a cultura, no sentido burguês, criticamente avaliativo do mundo, cede a vez à cultura no sentido antropológico puramente descritivo. Neste enredo de mudanças, a obsolescência exacerbada se torna modus operandi padrão da sociedade (HOBSBAWN, 2012).

Aproximações entre história e a crítica da arte

A relação íntima entre produtor e apreciador da obra de arte, vigente até pouco tempo na nossa sociedade, apresenta grau acelerado de desarticulação. Exemplo desta dissolução pode ser encontrado nas grandes exposições internacionais, constituídas, especialmente, por estruturas imponentes de montagem e circulação. Se antes estas exposições eram apenas o ponto final de um processo, agora desfrutam do privilégio de serem as únicas a se afirmarem como meio possível de arregimentar as massas consumidoras.

A arte já não é vista como um fim ou como um meio, mas como sinal de status; ela regride à função de carregar questões, sem ser, ela mesma, uma questão (MAMMÌ, 2012). Na medida em que estas grandes estruturas respondem pela primazia do circuito de veiculação e padronização cultural, os grandes edifícios corporativos simbolizam a magnitude do capitalismo no século XXI (HOBSBAWN, 2012). Tratam-se de fenômenos de uma mesma origem.

A visão de uma arte que sugere valores estáveis se torna um obstáculo que emperra a renovação contínua e a engrenagem do capital. Criou-se um mecanismo híbrido de interdependência que torna a análise mais complexa; se a arte precisa da indústria cultural (embora a negue a cada gesto), a indústria cultural precisa da arte como um meio mínimo de sustentação (MAMMÌ, 2012).

A aguda crise da crítica reflete a crise da própria arte e dos valores políticos atuais no seu sentido latu. A arte, permeada pelas demandas de uma sociedade administrada, perde sua ligação com o mundo do “artesanato”, impactando diretamente sua função crítica e sua capacidade de repor constantemente a discussão de seus próprios limites.

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Na medida em que fazer a crítica significa reconhecer o lugar, a colocação e o valor dela numa cultura, a obra de arte torna-se objeto histórico, portanto, tornando-se impossível separar a arte da história, tampouco a obra de arte da atribuição de valor estético (ARGAN, apud MAMMÌ, 2012). Neste raciocínio, a arte não pode recusar qualquer tipo de relação com o mundo, ou ainda, também não pode buscar uma identificação total com o mundo; desta forma ela perderia sua razão de ser. A crise da crítica implicaria, portanto, numa crise da relação da arte com o mundo (MAMMÌ, 2012).

A relação entre crítica e história se reforça na medida em que a segunda desempenha por excelência um papel de ator político, portanto, determinante das estruturas e manifestações sociais, dentre elas, a própria arte (HOBSBAWN, 1998).

“É a partir de uma perspectiva histórica e não de uma simples posição conceitual, que poderemos moldar novos instrumentos para a leitura da arte contemporânea e continuar fazendo aquilo que, afinal, é o que mais interessa: atribuir valor estético a obras singulares.”

(MAMMÌ, 2012, p.28)

Crises da crítica e da história: duas faces de uma mesma moeda

A percepção de um cenário de crise latente perpassa, de forma cotidiana, grande parte das experiências e fenômenos sociais contemporâneos. Crises no sistema representativo político, nas ideologias, na produção cultural, nos preceitos econômicos, são alguns dos exemplos que permeiam nosso cotidiano.

Damien Hirst The Physical Impossibility of Death in the Mind

Damien Hirst
The Physical Impossibility of Death in the Mind

O próprio esgotamento da crítica pode ser exemplificado pelas transformações das relações críticas entre a arte e os domínios hiperfetichizados da cultura. Evidencia-se uma imposição à arte de uma noção de modernidade e racionalização material vinculada à automatização da forma e de suas expectativas construtivas (SAFATLE, 2008).

A reificação do mundo, que traz consigo grande parte dos dilemas da nossa sociedade, não encontra fronteira em determinada dimensão da experiência neste mesmo mundo, seja ela histórica, cultural, econômica ou política. A arte e a história não se dissociam desta proposição. A crise se instala como perspectiva imanente do mundo contemporâneo.

 

Suporte Bibliográfico

HOBSBAWN, Eric. Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

MAMMÌ, Lorenzo. O Que Resta: arte e crítica da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

SAFLATE, Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.