Conhecer e Reconhecer Algo de Si que Ignorava – Reflexões sobre Birdman

Birdman – ou a inesperada virtude da ignorância, do diretor Alejandro González Iñarritu, pode nos revelar muito mais do que uma simples análise alusiva à indústria do entretenimento, e as características do engodo cultural que tal assunto pode suscitar. Apesar de transitar também por este tema, é no seu sentido filosófico que este filme deve nos impressionar.

Divulgação

Divulgação

Este texto não tem como objetivo realizar uma análise crítica cinematográfica stricto sensu. Busca-se, sem nenhum (pre)juízo de valor, realizar uma análise que extraia aquilo de universal das profundas dimensões pessoais e dramas da personagem principal. Talvez, por este motivo, esta análise só faça sentido se o leitor já tiver assistido e, principalmente, apreendido as dimensões metafóricas da obra.

A trama desenvolvida em torno da intenção de Riggan Thomson (Michael Keaton) – um ator reconhecido no passado pela interpretação de Birdman (estereótipo padrão do herói blockbuster) – de interpretar uma adaptação para o teatro de um conto de Raymond Carver, traz à tona muito mais do que o simples reconhecimento profissional em um meio tão complexo como o cinema e a dramaturgia, e os seus diferentes status de reconhecimento no mundo da arte. Destacam-se nesta intenção de Riggan os mais profundos sentimentos de realização, pertencimento, reconhecimento e busca de sentido.

Esta profundidade temática ganha força pelas belíssimas fotografia e montagem, fazendo uso de um plano-sequência que contempla quase que a integralidade do filme. Esta continuidade técnica, permeada por uma história e um roteiro que se desenvolvem com maestria, problematiza de forma sutil a passagem do tempo, num fluxo contínuo típico dos processos de construção da memória – campo aberto para transcender os dramas de Riggan para o plano do universal.

Esta continuidade, apoiada por uma trilha sonora composta por um solo jazzístico de bateria, que se sucede por todo o filme, em alguns momentos numa perspectiva metalinguística, torna evidente a pressão em que a personagem se vê envolvida. Estruturas sociais, econômicas, culturais e emocionais, mostram toda sua potência, num continuum contraponto entre Riggan e sua espécie de alter-ego (o maldito/bendito Birdman).

Concomitantemente ao desmoronamento psicológico de Riggan está a aflição de todos nós, afetados em maior ou menor medida pela passagem do tempo, e pela busca de sentido sobre o passado, o presente e, principalmente, o devir.

Partindo desta premissa, o uso da contraposição entre o cinema blockbuster e o teatro off-Broadway (os conflitos entre a baixa e a alta cultura, numa alusão simplificada de viés frankfurtiano), torna-se apenas um pano de fundo (um substrato), como tantos outros possíveis, das angústias de nosso tempo.

Divulgação - New Yorker Magazine

Divulgação – New Yorker Magazine

A complexidade da trama alcança seu ponto máximo no desfecho do filme. É nesse momento que Iñarritu coloca à prova toda a capacidade crítica e analítica do público. O recurso metafórico ganha força no voo de Riggan/Birdman da janela do seu quarto no hospital em que se recupera da sua peça teatral, literalmente forjada à sangue.

O fim da angústia e da aflição por meio do abandono da própria vida, a apropriação de um poder sobre-humano e a transmutação num verdadeiro homem-pássaro típica do realismo fantástico ou simplesmente uma sensação de desafogo pela obtenção do reconhecimento artístico e social, apresentam-se como leituras possíveis, selando o gran finale da obra. Tratam-se de possibilidades, todas elas de grande capacidade de aprofundamento, que demonstram toda a o potência do filme.

Birdman aprofunda e escancara os dramas de um ator que busca um sentido em sua vida (e talvez em sua obra), e é justamente neste movimento que se revela o universal, presente em todos nós.

“Todas as artes são como espelhos nos quais o homem conhece e reconhece algo de si que ignorava”

Alain (Émile Chartier)

O desconforto que esta análise contínua sobre a nossa existência pode nos causar é aquilo que transforma a ignorância numa espécie de nova virtude, parafraseando seu subtítulo. Só ela (a ignorância) é que pode, ainda, nos manter felizes.

Birdman ou Riggan?

Apoio Bibliográfico

Alain (Émile Chartier), Vingt leçons sur les beaux-arts, 1931, in: GRATELOUP, Léon-Louis. Dicionário Filosófico de Citações. São Paulo: Martins Fontes, 2004.